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Em quase quatro décadas de colaboração com jornais de nossa cidade, passei por situações, de variada natureza, extremamente graves, desde ameaças de pandemias anunciadas como potencialmente capazes de dizimar a humanidade (HIV, diversas mutações do vírus Influenza) até o 11 de setembro das Torres Gêmeas. No meio disso, os estertores da Guerra Fria, as ameaças de uso de artefatos nucleares, seca no Estado, vendavais destruidores em nossa cidade, incêndio da boate Kiss e graves perdas pessoais, que dizem respeito ao cronista/articulista, mas que, de alguma forma, se prestam à comunicação de quem escreve com seus leitores.
A vida, como regra, nos faz criar calos na alma, nos endurece para o enfrentamento dos problemas do dia a dia e domestica nossas emoções. Quanto mais se vive, mais se vê, mais se experimenta. Da experiência, é lícito esperar-se que resultem mais acertos do que erros e sabedoria na escolha dos caminhos. A propósito, o personagem narrador de um dos meus contos curtos (Autoridade) incluídos no livro coletivo Des-contos, da Turma do Café, publicado em 2017, diz o seguinte: "Tenho o couro curtido de insolações e invernias e não tenho medo de rigores. E tenho a ligeireza da velhice, que é conhecer os atalhos e saber a hora de encurtar distâncias. Mas não me nego ao caminho mais longo, que isso também é sabedoria, quando é de conveniência."
Em síntese, é razoável esperar-se de alguém que viveu bastante preparo para o enfrentamento das vicissitudes que lhes sejam antepostas ao longo de sua caminhada e que não se surpreenda com quase nada, porquanto, como a vida se repete (é o que se pensa e se diz), pouco do que virá será novidade capaz de provocar emoção irrefreável ou, simplesmente, embasbacamento. Isto não está valendo para mim.
No texto do último dia 17, falei do coronavírus, de amigos, de nossos netos e da incerteza quanto ao futuro que eles terão no mundo que lhes legaremos, ainda sem a clara dimensão do potencial regenerador da pandemia. Seja na amplitude dos aspectos físicos planetários, seja no aspecto anímico coletivo, seja, finalmente, na intimidade de cada um de nós. Como nunca na história da caminhada humana sobre a Terra se abrem de forma tão abrangente tais possibilidades.
Nesses poucos dias de mundo praticamente parado, em que a velha ordem foi posta abaixo, já dá para perceber um desejo, quase ânsia, de transformação, de mudança de valores, de refazimento das relações interpessoais para sedimentá-las não mais em critérios de avaliação corrompidos pela ganância, pelos interesses individuais e pelo vezo argentário que domina o mundo desde sempre, mas por valores que, respeitando individualidades, a elas sobreponham os interesses coletivos. Que ao dinheiro sobreponham as solidárias relações de amizade; que ao desrespeito pelas diferenças sobreponham a humanidade que nos faz iguais; que ao ódio sobreponham o amor.
Naturalmente, há quem deseje apenas o fim da pandemia para retorno da velha ordem, com modernos senhores feudais e seus vassalos; com o deus mercado, senhor de tudo e de todos, dando as cartas e jogando de mão. E há quem queira, simplesmente, o fim do isolamento, para, quem sabe, provocar uma abrangente "limpeza" social.